DEFINIÇÃO
As Imunodeficiências Primárias (IDP) são defeitos do sistema imune que
possuem repercussões clínicas das mais variadas formas. Assim, essa doença pode
atingir tanto o braço humoral e/ou celular da defesa adaptativa (correspondente
aos linfócitos B e T, que podem ser atingidos isoladamente ou em conjunto),
quanto os mecanismos de defesa inata (representados pelas células Natural
Killers, os fagócitos e o sistema complemento).
Na prática clínica, a distinção entre os diversos defeitos imunológicos
da defesa adaptativa nem sempre é possível, conferindo a essa classificação uma
característica principalmente didática.
As IDP são principalmente de origem genética e estão presentes em muitos
indivíduos, sintomáticos ou não. A doença é detectada geralmente em crianças de
6 meses a dois anos, quando os anticorpos maternos são depletados do organismo
da criança, deixando-o susceptível às diversas formas de infecção, que em geral
são recorrentes.
Tabela com as possíveis manifestações das Imunodeficiências segundo o agente envolvido. Baseado na tabela de Robbins&Cotran. PATOLOGIA: Bases Patológicas das Doenças. 8ªed. Ed Saunders Elsevier |
Oito IDP são descritas, sendo elas:
- Agamaglobulinemia Ligada ao X (Agamaglobulinemia de Bruton)
- Imunodeficiência Variável Comum
- Deficiência Isolada de IgA
- Síndrome de Hiper-IgM
- Síndrome de DiGeorge (Hipoplasia Tímica)
- Imunodeficiência Combinada Grave
- Imunodeficiência com Trombocitopenia e Eczema (Síndrome de Wiskott-Aldrich)
- Deficiências Genéticas do Sistema do Complemento
a) AGAMAGLOBULINEMIA LIGADA AO X:
“Defeito de uma tirosina quinase citoplasmática – Btk (Tirosina Quinase de Bruton) – que constitucionalmente está ligada a um receptor de imunoglobulina da membrana plasmática das células linfocíticas pré-B. Esse complexo é responsável por dar seguimento a maturação do linf.B.”
ETIOFISIOPATOGENIA
Esta é a forma mais comum de IDP e ocorre por uma mutação no gene
codificante da Btk, localizado no braço longo do cromossomo X, em Xq21.22. Quando
há essa alteração, há também a não-codificação das cadeias leves das
imunoglobulinas, ausência da montagem da molécula completa do receptor
antigênico e parada do transporte da molécula até a membrana da célula,
resultando na parada da maturação dos linfócitos B.
Por ser ligada ao X, essa condição é quase exclusiva do sexo masculino.
Além disso, aumenta de até 35% da chance de desenvolver doenças autoimunes
(como artrite e dermatomiosite), sendo desconhecido se este mecanismo é
resultado da degradação da auto tolerância ou se há influência de infecções ao
longo da vida.
CLÍNICA
A presença da sintomatologia se dá a partir dos 6 meses de idade
(depleção das Ig maternas), apresentando infecções bacterianas recorrentes do
trato respiratório (faringites agudas e crônicas, sinusite, otite média,
bronquite e PNM) que chamam atenção para o diagnóstico.
Os microorganismos comumento envolvidos nas infecções são o Haemophilus
influenzae, o Streptococcus pneumoniae e o Staphylococcus aureus. A redução da
opsonização viral torna os sujeitos mais susceptíveis a infecções por enterovírus,
tais como ecovírus (que pode causar encefalite fatal), poliovírus (agente
causador da poliomielite paralítica) e coxsackievírus. Infecções persistentes
de Giardia lamblia também fazem parte da clínica do paciente imunodeprimido.
Na medição dos linfócitos B no sangue, estes encontram-se ausentes ou
intensamente reduzidos na circulação e há depressão dos níveis séricos de
imunoglobulinas. Há ainda atrofia de centros germinativos dos linfonodos, das
placas de Peyer, do apêndice e das tonsilas.
TRATAMENTO
O tratamento é feito a base de imunoterapia, com a reposição de
imunoglobulinas no sangue.
b) IMUNODEFICIÊNCIA VARIÁVEL COMUM
“Há um número normal de linfócitos B no sangue e nos tecidos linfóides, entretanto estes não possuem a capacidade de diferenciar-se em plasmócito, seja por uma alteração do próprio linfócito, seja pela não ativação através do linfócito T auxiliar”
ETIOFISIOPATOGENIA
É uma entidade relativamente comum e todos os pacientes apresentam
hipogamaglobulinemia. Alguns casos, essa redução se dá apenas na IgG. É um diagnóstico
de exclusão, de modo que outras IDP devem ser descartadas a priori. A doença afeta
ambos os sexos igualmente.
Quanto a etiologia da doença, pode haver comprometimento hereditário,
com variáveis padrões, e esporádicas (sem que haja um componente genético
detectável).
As causas podem ser por:
I. Defeito intrínseco do linfócito B:
exemplo: alteração em receptor para a citocina BAFF, que promove a
manutenção e a diferenciação de linfócito B
II. Anormalidades da ativação de linfócito B mediada por linfócito T
auxiliares:
exemplo: alteração no co-estimulador indutivo (ICOS), molécula que está
envolvida nas interações entre linfócito T e B e na ativação dos linf.T
CLÍNICA
A clínica assemelha-se a Agamablobulinemia de Bruton, com infecções
piogênicas sinopulmonares recorrentes, infecções por enterovírus e complicações
de infecções por Giardia lamblia. Além disso, infecções recorrentes por herpes
vírus ocorrem em cerca de 20% dos pacientes.
O início dos sintomas dá-se na idade escolar ou na adolescência. As
doenças auto-imunes podem estar associadas e 20% dos pacientes apresentam-nas,
sendo uma delas a Artrite Reumatóide.
Há hiperplasia de tecidos linfóides (baço, intestino, linfonodos) decorrente
da não-detecção de IgG circulante, que faria o feedback negativo, freando a
proliferação destes tecidos. Há risco de malignidade linfóide.
Baço hiperplásico. Imagem retirada de: uftm.edu.br |
c) DEFICIÊNCIA ISOLADA DE IgA
“Pacientes possuem níveis extremamente baixos de IgA nos soro e de IgA secretória”
ETIOFISIOPATOGENIA
É uma imunodeficiência comum, que atinge cerca de 1 indivíduo a cada
600 nos EUA (indivíduos com ascendência européia). É menos comum em negros e
asiáticos.
Possui etiologia variada, podendo ser um acometimento de origem
genética ou pode ser adquirida (associada à toxoplasmose, sarampo ou a alguma
outra infecção viral)
Os pacientes com deficiência de IgA podem ser deficientes também em
IgG2 e IgG4. Estes possuem tendência maior a desenvolver infecções que os
pacientes com deficiência apenas da imunoglobulina A.
Quando transfundidos com sangue que possua IgA, esses indivíduos tendem
a desenvolver uma grave reação anafilática.
A patogênese da imunodeficiência isolada de IgA é desconhecida, podendo
estar associada à defeito do BAFF (mencionado no sub-item Imunodeficiência
Variável Comum).
CLÍNICA
A maioria dos pacientes com a doença é assintomática. Entretanto, as
manifestações clássicas da doença são infecções de mucosas do trato
respiratório, gastrointestinal e urogenital.
Os pacientes sintomáticos apresentam-se com infecções sinopulmonares
recorrentes, diarréias e corrimento urogenitais.
Há uma alta freqüência de alergias do trato respiratório e associação
com doenças auto-imunes como Lúpus Eritematoso Sistêmico e Artrite Reumatóide.
Amigdalite purulenta. Imagem retirada de: mdsaude.com |
d) SÍNDROME DE HIPER-IgM
“Há produção de anticorpos IgM, porém há deficiência na síntese de IgG, IgA e IgE”
ETIOFISIOPATOGENIA
Alterações genéticas ligadas ao X está presente em 70% das pessoas com
a doença, possuindo mutações na codificação do gene CD40L no Xq26. O restante
apresenta o padrão autossômico recessivo, possuindo mutação no gene codificador
CD40 ou na enzima Desaminase Induzida pela Ativação. Essas moléculas são
responsáveis pela maturação por afinidade das imunoglobulinas e pela mudança de
classe delas.
Por essas características etiológicas, a doença ocorre mais em homens
que em mulheres.
Na patogênese, os linfócitos T auxiliares não transmitem os sinais de
ativação para os linfócitos B e macrófagos, reduzindo a síntese das imunoglobulinas
das classes G, A e E. De todo modo, os linfócitos T e B apresentam-se em número
e morfologia normais.
O soro está com níveis normais ou elevados de IgM, mas não de IgA e IgE
e possui níveis extremamente baixos de IgG.
CLÍNICA
Há uma reação entre a IgM e os elementos do sangue, levando à sua
depleção, caracterizada por anemia hemolítica auto-imune, trombocitopenia e
neutrofilia.
Em idosos, pode haver proliferação exagerada de plasmócitos produtores
de IgM, com infiltração no trato gastrointestinal, podendo evoluir com óbito.
Como característica, apresenta infecções piogênicas recorrentes, sendo
que indivíduos com mutação do CD40L são mais susceptíveis a infecção pelo
microorganismo intracelular Pneumocystis jiroveci.
e) SÍNDROME DE DIGEORGE
“Doença decorrente da insuficiência do desenvolvimento terceira e quarta bolsas faríngeas, sendo que a última dá origem ao timo, paratireóides, algumas células claras da tireóide e ao corpo ultimobranquial, levando, dentre outras alterações, à reduzida síntese de células T”
ETIOFISIOPATOGENIA
Também chamada hipoplasia tímica, a doença é resultado de um defeito
congênito que reduz o número circulante de células T, leva ao não
desenvolvimento das paratireóides cursando em outra imunodeficiência primária
com características próprias.
O baixo número de células T leva à susceptibilidade às infecções
fúngicas e virais. Os níveis de imunoglobulinas são normais ou reduzidos.
Essas alterações são resultado da deleção de um gene do cromossomo
22q11, alteração esta presente em cerca de 90% dos pacientes.
CLÍNICA
Há uma perda variável da imunodeficiência celular, sendo que a
hipoplasia ou ausência do timo pode ser um achado. A ausência das paratireóides
leva à tetania, em que se observa a positividade para o sinal de Chvostek e
para o sinal de Trousseau, convulções e alargamento do intervalo Q-T no
eletrocardiograma.
Defeitos congênitos do coração e grandes vasos também podem estar
presentes nessas crianças.
f) IMUNODEFICIÊNCIA COMBINADA GRAVE
“Conjunto de síndromes que unem defeitos das respostas imunes humorais e celulares, sendo uma alteração mais comumente ligada ao X, podendo ter também padrão autossômico recessivo”
ETIOFISIOPATOGENIA
A forma mais comum, presente em 50-60% dos casos, é uma alteração
ligada ao X, de modo que é mais comum em meninos que em meninas. A mutação na
subunidade gama dos receptores de citocinas é a base da fisopatologia da doença
(quando ligada ao X). Esta subunidade faz parte dos transdutores de sinal de
interleucinas, sendo necessários para a sobrevida e proliferação dos
progenitores linfóides, particularmente dos linfócitos T. Quando alterada, leva
à imunodeficiência.
O restante dos casos são correspondentes a um padrão autossômico
recessivo.
CLÍNICA
Os lactentes afetados desenvolvem candidíase oral proeminente,
dermatite das fraldas extensas e insuficiência do crescimento. Os portadores da
doença são pessoas susceptíveis a infecções recorrentes graves por Candida
albicans, Pneumocystis jiroveci, Pseudomonas, CMV, varicela e um conjunto
inteiro de bactérias.
TRATAMENTO
O transplante de medula óssea é o tratamento padrão-ouro na atualidade.
Sem transplante da medula óssea, o óbito ocorre geralmente no primeiro ano de
vida. Pesquisas estão sendo desenvolvidas para estabelecer a terapia gênica em
casos Ligados ao X.
g) IMUNODEFICIÊNCIA COM TROMBOCITOPENIA E ECZEMA
“Doença recessiva ligada ao X que, possivelmente, possui envolvimento de moléculas do citoesqueleto”
ETIOFISIOPATOGENIA
Também denominada Síndrome de Wiskott-Aldrich, é uma doença em que há
mutação no gene localizado no cromossomo Xp11.23, gene que codifica a proteína
da Síndrome de Wiskott-Aldrich (WASP). Acredita-se que a proteína WASP possui
relação com as proteínas do citoesqueleto e a sua alteração influencia na
migração celular e transdução de sinais, que interfeririam na imunidade do
indivíduo, levando à imunodeficiência.
CLÍNICA
Há trombocitopenia, eczema e uma acentuada vulnerabilidade a infecções
recorrentes. Com a progressão da doença há, geralmente, o óbito precoce. Os
pacientes não produzem anticorpos contra antígenos polissacarídeos e a resposta
aos antígenos protéicos é insatisfatória.
Há baixos níveis de IgM e, geralmente, níveis de IgG estão normais,
enquanto os níveis de IgA e IgE estão elevados.
Eczema em região flexural poplítea. Imagem retirada de: http://emedicine.medscape.com/article/888939-overview |
TRATAMENTO
O único tratamento é transplante de medula óssea.
h) DEFICIÊNCIAS GENÉTICAS DO SISTEMA COMPLEMENTO
“São alterações que podem ocorrer em qualquer parte das vias do
complemento, seja da via clássica ou da alternativa; possui variadas
manifestações clínicas”
- DEFICIÊNCIA DE C2: é a mais comum de todas, sendo que esta (e a de outros componentes iniciais da via clássica – p.ex.: C1 ou C4) há pouco ou nenhum aumento da susceptibilidade a infecções. Há aumento da ocorrência de doenças auto-imunes LES-like.
- VIA ALTERNATIVA DO COMPLEMENTO: É rara a deficiência da via alternativa do complemento, sendo associada a infecções piogênicas recorrentes.
- DEFICIÊNCIA DE C3: o C3 é o elo entre as duas vias, de forma que a sua ocorrência resulta em infecções piogênicas sérias e recorrentes. Há aumento da incidência de glomerulonefrites mediadas por imunocomplexos: causada pela ativação de leucócitos
- DEFICIÊNCIA DE COMPONENTES TERMINAIS DA VIA DO COMPLEMENTO: os elementos terminais são C5, 6, 7, 8 e 9, e sua deficiência leva à susceptibilidade a infecções recorrentes por Neisseria gonocócica e meningocócica.
REFERÊNCIAS
1. Robbins & Cotran; PATOLOGIA: BASES PATOLÓGICAS DAS DOENÇAS; 8ª Edição, 2009. Ed. Elsevier
1. Robbins & Cotran; PATOLOGIA: BASES PATOLÓGICAS DAS DOENÇAS; 8ª Edição, 2009. Ed. Elsevier
Audinne Ferreira e Silva
Acadêmica de Medicina
Liga de Patologia
Universidade Federal do Ceará